sábado, 26 de março de 2011

A Lampreia



Março.  É neste  tempo  que os caracóis fazem expedições aventureiras, navegando nos mosaicos molhados do meu terraço. E é também  o mês da Lampreia, sabem, aquele nojento ciclóstomo cuja morfologia me recorda a taenia saginata mas que faz um arroz dito delicioso (que eu acho assim assim, mas adiante...).
E é o tempo das magnólias e também das camélias, as flores mais românticas, não apenas pela imortalidade que lhes deu Dumas filho com a sua Dama ou Verdi com a Traviata, mas também pela beleza singela com que vivem e com que morrem, pois nada há mais belo que um tapete de camélias caídas rodeando o tronco-mãe.


  as magnólias...

 
 e as camélias.

E, por isso (pela lampreia, claro, porque camélias e magnólias só eu pareço apreciar!) um grupo de gourmands-gourmets (vulgo lambões) se junta habitualmente para uma viagem gastronómica ao Minho (mas não só, também ao Mondego), com passagem, claro, pelos leitões da Bairrada  (aqueles bichinhos inteligentes e amorosos que nós empalamos grelhamos e devoramos salivando como ogres, ou aquele manjar de que todos os amigos conhecem um restaurante que serve o melhor).


Ora cá está o sítio do melhor leitão do mundo para o Pedro Henriques



E não há adega distraída que se livre de nós antes do respectivo tributo. Aqui são as Caves Aliança, onde tivemos a surpresa de encontrar aquela luminária do pensamento e da arte que dá por nome de Berardo, esse mesmo, o Joe. O Pedro Henriques não resistiu a mandar-lhe uma boca, "então a beber na concorrência?" Ao que a modesta criatura respondeu "não não, acabei de comprar estas caves." E lá seguiu para uma sala privada onde, pela porta entreaberta, se adivinhava uma misteriosa confraria.
Poupo-vos ao teor da brejeira conversa, que a imagem ilustra, com a simpática enóloga.


Certo é que depois de uns copos se começa a ver tudo a dobrar!

E até as paredes parecem ter pipas...


Mas melhor ou pior lá chegámos algures, neste caso a Monção, à Casa das Rodas, antigo solar dos Távoras que nos últimos anos foi a nossa base de operações (gastronómicas, claro, nas  cirurgias estamos geralmente mais sóbrios).

Dom José posa com seu ar de displicente castelão. Um belo solar de granito onde ainda conhecemos a Dona Isabel, última titular, personagem altiva como convinha à sua condição. Morreu pouco antes da nossa última ida, em 2010. Contava a Elisabete,a governanta e nossa anfitriã, que quando descia ao povoado para fazer qualquer compra ou solicitar serviços, a Dona Isabel passava à frente de todas as filas, olhando com ar sobranceiro e desdenhoso  quem quer que se atrevesse a censurá-la. Há que manter o povoléu em respeito!


Nos jardins meio abandonados do solar, cá estão elas: são ou não belas as camélias moribundas de que vos falei?

Ali perto em Monção, a Virgem das Dores olha com um semblante algo dorido para o supermercado Modelo e outros patrocinadores que lhe arranjaram, certamente, digo, à sua revelia!


Pequeno-almoço em Monção e uma volta pela vila




E depois pelas igrejas! Não perco uma. Nos sítios mais improváveis encontram-se estes concentrados de matéria moldada pela espiritualidade, tendo no seu interior, como as ostras, pérolas duma beleza e imaginação ora geniais, ora de uma ingenuidade e cromatismo tocantes. Não sou católico, mas gosto de me sentar sob aquelas abóbadas e sentir a força invisível da fé de quem as contruiu e de quem as frequenta. Beber aquele silêncio cheio de inaudíveis cânticos e sentir que há mais coisas entre o céu e a terra... como dizia Polónio no Hamlet.




Capelinhas tipo Via Sacra, que dão a volta à parte antiga de Monção, decoradas com as  flores frescas da devoção quotidiana.

 Time to go.



Adega do Sossego,  Peso, perto das termas abandonadas não muito longe de Valença. Jantar obrigatório. Rica vitela de Lafões, regada com um tinto verde da magnífica casta Vinhão. O que se nota na pose do João e no ar arrelampado do Pedro!


E por vezes, depois de uns alegres copos, o meu olhar resvala por insignificantes ou intrigantes mistérios do mundo.

E, uma bela manhã, lá fomos nós até à Galiza. Às Rias Bajas, comer, como no, as melhores ostras do mundo, regadas, melhor inundadas com um Albarinho galego. No caso do Zé os Albarinhos ou vinhões, cabernets ou sauvignons sempre abundantemente diluídos em cerveja. Gostos...



... Com as consequências inerentes registadas fielmente por este vosso escriba e por um bando de alegres espanholitas que alegraram o ar com os seus risinhos malandros.
No jardim público!!! Francamente,  Don José...!



E depois lá vêm sentar-se com este ar inocente!

 Malte velho, oferta do Vasco, que o José empunha orgulhosamente.

Noite no solar, lareira acesa, queijo e vinhos diversos seguidos daquele condenado whisky, paradoxalmente velho mas de vida breve.



Torre da Lapela. Já noutros anos quando a avistávamos da estrada para Valença o Zé lá queria ir.
Foi desta!



No caminho encontrámos outro grupo de turistas, que, perdidos do guia, tasquinhavam placidamente os petiscos regionais.

E  chegámos à torre com este magnífico espinheiro em primeiro plano.


E o que é que a torre tem na lapela?
Vejam,  um arbusto, símbolo talvez da pertinácia das gentes e da versatilidade das pedras


Mosteiro de Sanfins. Fundado no Séc. XIV,agora perdido algures e abandonado. Só com os mapas e a memória visual do Zé lá conseguiria chegar outra vez!



Ora cá está um feliz romeiro com ar de guarda costas do Abramovich.


 Um menos feliz, com ar de vítima do destino (com camélias em fundo!)



E um expert Kungfuzeiro que abusou da poção mágica ao almoço, claro!


E este princês que com o seu ar altivo observa a cena com piedoso menosprezo.

Mas também há os momentos bucólicos





Algures no Rio Alva


Por estranho que pareça este tanque, ao lado do Alva, foi feito num sítio e tempo longínquos para banhos termais. No entanto, a coloração duvidosa da água, embora desencorajasse quaisquer veleidades banhístico- terapêuticas, reflectia uma nublada e poética imagem dos peregrinos...

que  se olham embevecidos nas águas termais que lhes reflectem  íntimas e narcísicas vaidades.
Diga-se que com razão! Todos ficámos mais bonitos.

Visitas históricas; aqui a Bobadela, outrora importante cidade romana de que vemos o arco do fórum, e que tem um imponente anfiteatro que estava em recuperação ao tempo da nossa visita


Lá perto, isolada, esta intrigante construção. É a Casa dos Espíritos, bar mais ou menos alternante, alternativa para noites solitárias de província. Nós, eu e o Zé, só fomos atraídos pelo insólito da fotografia, só! cross my fingers! .E pensam vocês que a provincia é uma parvónia!
Num sugestivo primeiro plano, as Vestais dançam à volta da coluna.



O Pedro mostra ao Zézinho a sua máquina fotográfica russa que faz fotos tipo olho de peixe  (terá sido oferta do Abramovitch?)


Alto da Serra do Açor, outrora coberta de florestas de castanheiros, hoje tristemente coberta de cinzas e pequenos arbustos. O Zé, à falta de cerveja, lá faz um esforço e bebe a beberragem local.
Momento digno de registo!


Ponto mais alto. Ao fundo a Serra da Estrela. Ao centro nós em pose (algo) fálica...
E eu como ponta de lança...


Et  la voilà, Serra da Estrela


Desta vez éramos só quatro e fomos na limousine do Zé



Em Seia, cabrito no forno (reparem que há sempre uma cerveja à frente do Zé)

E uns minutos de meditação na igreja local

Casa de pedra sobre uma imensa mole de granito. Imaginei-me o Jacinto de A Cidade e as Serras. Aqui era um bom local para morar uma velha tia,que nos esperasse de lareira acesa e jantar ao lume. Sonhos...


Só fomos à feira comprar queijo, mas o júbilo da populacha, pela nossa visita, foi tal que nos receberam  com banda de música.


E  os bombeiros não quiseram ficar atrás!

 Em casa do Vasco Ribeiro, em Oliveirinha, recepção  magnífica.


O olhar inocente deste bicho desperta-me um imenso apetite por vitela de Lafões, com a equivalente guarnição de culpabilidade.

E lá vamos nós pela inconfundível ponte a caminho de Tuy, terra galega, para comprar charutos e cigarrilhas...

 E, imaginem, visitar o túmulo de Torquemada, o grande inquisitor


Num nicho esta impressionante estátua. E são estas surpresas que por vezes nos esperam nas igrejas. Há aqui algo de sugestivamente sado-masoch.



Aqui descansa o dito Torquemada, que em boa verdade mais devia chamar-se Torqueimada




À saída da igreja, um restaurante com este curioso nome e logo. Também um pouco sádico, no?


Mais um auto-retrato (são praticamenteas únicas fotos minhas que tenho, não é narcisismo, não senhor!) 

E aqui está o Restaurante Jardim, em Penso, perto de Melgaço, local obrigatório de peregrinação para os apreciadores do negro pitéu, acompanhado pelo excelente verde Alvarinho da casa. Se lá forem comprem umas garrafas. Vale a pena, Por 5 € é uma pechincha.



E enquanto se espera mesa, um aperitivo e um jogo de matrecos


E, já sentados...



... chega finalmente o objecto da nossa gula. Não liguem ao eventual simbolismo dos dedos. Não sei de quem são (confesso que parecem os meus) mas asseguro tratar-se apenas de um ocasional  instantâneo  sem quaisquer intenções menos próprias.

Castro Laboreiro. Pedro e Zé olham a paisagem do alto da ponte. Ah, se o homem tivesse asas!

      
E eu olho-os cá de baixo


José fotografa momentos íntimos, desforrando-se de em íntimos momentos ser fotografado.


Volta pela Senhora da Peneda. Há lá para baixo mais uma bela Via Sacra,que só eu fui ver, e de que apenas vos dou uma imagem para não ser acusado de voyerismo religioso.

Et la voilà!

 Original e supersónico táxi local, que por essa razão deu uma foto um pouco tremida.

Por vezes o nosso olhar distraído encontra pequenos pedaços de outros mundos. Este era bem alegre!


Foto do José movie star, para deleite de suas admiradoras


Capela de S. Félix na Barbeita. Estava fechada e não pude ver nem o interior nem as relíquias do dito santo que por lá repousam. Safam-se de mais umas fotos litúrgicas. Bela estrada e ponte romanas.

Que o Zé atravessa sob o fundo de nuvens brancas

E como mostra a imagem, são horas de voltar para Lisboa e suas rotinas. Até breve.

Não sem antes comprar uns deliciosos pastéis de Fão para adoçar quem com doces sentimentos aguarda a nossa chegada.

NOTA FINAL, agora escrita por mim, a Teresa: Este blogue é um trabalho de amor e de amizade (e a amizade é talvez a forma mais perfeita  de amor). Tudo o que é aqui publicado é amplamente discutido entre mim e o Carlos, em incontáveis telefonemas.Até a banda sonora. Com a minha paixão assolapada por Ópera, era inevitável que me lembrasse da Carmen, depois de o Carlos várias vezes ter referido o Zé como Don Jose. Está longe de ser uma das minhas óperas de eleição, já o Carlos gosta muito dela, achando-a leve, ligeira. Poupo-vos a nossa discussão, eu a dizer "por amor de Deus, a gaija morre esfaqueada, o que é que há de leve e ligeiro nisto?"

Chegámos a uma solução que agradava aos dois para a banda sonora. A Habanera, pela voz incomparável de Marilyn Horne, provavelmente a maior mezzo soprano do século XX.

Carmen era um espírito livre. Tal como Marie Duplessis, a Dama das Camélias. Tal como Violetta Valéry, a Traviata. Tal como o Zé, o nosso amigo de quem a saudade vai sendo cada vez maior. Vale-nos a memória.