Por Henrique Real
Demos os primeiros passos na luz molhada da manhã quando iniciámos
o passeio no Monte da Eira Velha, junto à estrada de terra que conduz à margem
norte da Ribeira de Seixe, já no seu percurso final, separando o Baixo Alentejo
do Algarve. O curso de água principal toma inicialmente o nome de Ribeira da
Perna Negra, junto à serra de Monchique, e depois de passar a povoação de Foz
de Perna Seca recebe a Ribeira do Lameiro. Só a partir daqui adquire o nome de
Ribeira de Seixe até desaguar na Praia de Odeceixe, por baixo da Ponta Branca.
Depois
de transpostos os canaviais que marcam o cruzamento com a estrada que vem da
praia da margem norte, um lugar de eleição para os viajantes de
carros-caravanas onde os míticos “pães-de-forma” se encontram ocasionalmente, virámos
à esquerda. A estrada deserta de trânsito apenas se congestionava uns metros
bem acima das nossas cabeças, onde as aves circulavam em camadas, como se um
radar de aeroporto as obrigasse a manter a mesma altitude. Mais perto, os
pardais vulgares, em voos desordenados, confundiam aquele domingo de janeiro
com qualquer outro domingo de abril – podia ser do mesmo ano –, tanta inundação
de luz por ali havia. Lá no alto, as silhuetas de um casal de milhafres assinalavam
a fronteira proibida do céu. Cá em baixo, junto ao rio, três cegonhas brancas deslizavam,
a velocidade constante, por cima do reflexo da água.
Passámos
por uma zona sombreada por pinheiros bravos; do lado esquerdo, por trás das
sombras, a cobrir uma colina meia de areia, meia de barro, brilhava o óleo da
esteva que por ali abunda e que tanto contribui para o sucesso da Dior ou da Chanel. Do outro lado da estrada, os prados de regadio não largavam
o pequeno rio. As primeiras casas alentejanas anunciavam a chegada a Baiona – ainda estamos bem longe de Biarritz,
gracejou um de nós – junto à ponte metálica que liga ao Algarve. Já do outro
lado da ponte, virámos no primeiro cotovelo à esquerda e tomámos o Sul, o mesmo
que Luís Sepúlveda refere nos seus livros. Preferimos seguir a indicação de
Zambujeira de Baixo, embora a Patagónia estivesse quase na mesma linha recta. Esse
caminho tornava-se mais encharcado, mais florido, mais perfumado e, às tantas,
a nossa vontade caminhava à nossa frente, já para além da curva com o risco de
se perder na serra de Monchique. Quatrocentos metros mais adiante, largámos o
rasto do perfume e virámos à esquerda por um caminho ainda mais ensopado; um de
nós terá mesmo dito para não andarmos por cima das águas do rio que isso iria
dar asneira, até porque não consta da literatura religiosa que alguém tenha
esse poder de caminhar por cima das águas de mochila pesada. Normalmente andam nus, ou, na melhor das
hipóteses, cobertos de um pó dourado que não os impede de flutuar, disse a
voz no fim do pelotão.
Atravessámos
a sombra de um arvoredo em forma de arco e saltámos para cima de uma tábua
larga e muito comprida de madeira por baixo da qual pequenos braços de água se iam
juntando à ribeira de Seixe. A paisagem tornava-se mais agrícola, pela cor e
pelo cheiro. Cabeças de gado mexiam-se à procura de erva abundante para reporem
a ruptura de stock dos seus quatro
estômagos, provocada pelo verão seco do ano anterior. Prosseguimos com o passo
a pensar no futuro e infletimos ligeiramente para norte, até chegarmos à
povoação de São Miguel. O aglomerado de casas – fachadas perfilando-se umas
atrás das outras – anunciava um projeto urbanístico relativamente recente, com elementos
supostamente urbanos pretendendo afirmar-se na imensidão da paisagem
natural. O gazão de um pequeno jardim público – o mesmo que amortece a sola dos
sapatos dos golfistas – poderia desafiar um prado a perder de vista,
confundindo-se lá ao longe com a sombra de três enormes colinas, não fora pelos
três volumosos contentores de lixo colocados na nossa linha de visão. Lembrei-me
de Orsenna, esse agitador de consciências, quando diz que “… on risque de
tout foutre en l’air”.
Depois
de vinte minutos de relógio, saímos da estrada alcatroada que nos deveria levar
a São Teotónio. Desembrulhámos os 1:25000 da carta militar e decidimos prosseguir
para oeste por um carreiro, descendo e subindo planaltos cobertos por
coníferas, eucaliptos e outras árvores de alto porte, para facilitar a
descrição. Desse ponto alto, vislumbrava-se uma magnífica paisagem – parece uma
frase batida mas não é, trata-se rigorosamente de uma magnífica paisagem –, e
para trás de nós ia ficando o recorte silencioso da serra de Monchique. A norte
– o mesmo que Eric Shipton conquistou em 1958 – observavam-se paredes brancas
que refletiam a luz solar, mas já com uma inclinação de sessenta graus. À nossa
frente pressentia-se, lá ao longe, a presença do mar. A estrada que pouco
antes era um carreiro – mas podemos aceitar a memória confusa – ia-se
estreitando vagarosamente até se tornar uma pequena passagem. Para sermos ainda
mais rigorosos, a partir dali caminhámos num “pé-posto” escorregadio, apertado
pelas ramagens das árvores, pelo som de água a correr e pelo ladrar de uns cães
junto a uma pequena casa retirada de um conto infantil. A chave na porta e a
chaminé a fumegar levava-nos a imaginar quem poderia ali viver – É o Wladimir Kaminer, regressado da Viagem a
Tralalá para escrever o seu livro, disse um, Não, é o Almeida Faria, que para aqui veio escrever O Murmúrio do Mundo,
disse outro – quando senão ouvimos o assobio de uma mulher a chamar pelos seus
cães. Passámos novamente por um pequeno curso de água até chegarmos a
Choeiro, o nome de duas ou três casas que serão ou foram uma aldeia em
tempos remotos. Informo, para quem não conhece, que não muito longe dali, a
caminho de Santa Clara de Saboia, existem duas aldeias com uma toponímia sonora
parecida, a primeira chama-se Choça, a segunda Chaiça, esta provavelmente
fundada pelos muitos alemães que por ali naufragaram.
Pouco
depois chegámos à estrada N120 que liga Lagos a Odemira. Continuámos o caminho
sempre para oeste, nessa altura num ritmo mais acelerado pelo relógio
biológico, seguindo a torre do depósito de água que indica onde fica o Brejão.
Após uma pequena pausa no Café Central, saímos reconfortados por uma sopa
quente e biológica, diriam aqueles que raramente saem das grandes cidades. Do
Brejão à Azenha do Mar eram cerca de quarenta e cinco minutos a passo largo. Do
lado direito da estrada, estufas, do lado esquerdo da estrada, estufas. O ar
leve e fresco da serra dava lugar a um cheiro nauseabundo apodrecido pelas
“químicas”, como diz a gente local, que permitem que milhões de alfaces ali
cresçam nos 250 hectares orgulhosos da multinacional Vitacress Salads. Por detrás de uns arbustos e de telas de plástico
rasgadas pelo vento que em tempos haviam servido de estufas, ouviam-se os risos
de um grupo de homens e de mulheres, peruanos, colombianos, tailandeses,
romenos, ucranianos, que
passados nove meses ou nove anos povoarão aquela região com uma etnia
imprevisível.
Chegámos
finalmente à Azenha do Mar. Parecia um dia de festa mas era apenas o frenesim à
volta do único restaurante da terra onde as pessoas se acotovelavam para se
sentarem à volta de um tacho pousado em cima de uma das mesas. Virámos à
direita na Rua da Garoupa, depois prosseguimos pela Rua do Robalo, continuando
pela do Linguado e do Polvo, chegando finalmente à grande avenida dos
pescadores, tudo isto numa distância máxima de cinquenta metros. A Azenha do
Mar é uma pequena povoação formada por uma comunidade piscatória, mas no início
dedicava-se apenas à apanha das algas. Só mais tarde se viraram para o peixe ou
para a emigração. A alga não dava dinheiro e o peixe, hoje, pouco dá.
Atravessámos
a pequena ribeira junto ao suposto porto piscatório e continuámos o caminho em
direcção a Odeceixe, ora a descer ora a subir, até chegarmos ao planalto
arenoso coberto por esteva, chorão e outras tantas plantas marítimas. Nessa
paisagem sentimos o princípio ou o fim do mundo, a mão do criador invisível ou
seja lá quem ele for; foi ali que tomámos consciência de que todos nós somos
feitos da mesma matéria, e todas as células que transportávamos desde o
início do passeio se confundiram com as do sol, as do mar, as dos peixes,
as dos cardos, as da lama presa aos sapatos. Só o barulho do passo nos levava a
acreditar que tínhamos duas pernas e éramos humanos.
As pernas
felizes deram lugar a pernas cansadas ao fim de mais 30 minutos de marcha,
quando chegámos à Ponta Branca, a norte da Praia de Odeceixe. Qualquer palavra
ou frase que quiséssemos compor para descrever o que víamos ao nosso redor era
imediatamente levada pelo vento. A Ponta Branca é daqueles lugares onde havemos
de voltar até ao último dia da nossa vida na tentativa de escrevermos um
pequeno parágrafo. É o nosso direito ao delírio, como diz Galeano. E lá do alto,
junto da deusa-natureza, deixámo-nos transportar pelo último raio solar do dia
até descermos ao monte.
Dedico este pequeno texto ao Zé Alves, de
tantas saudades que deixou; e ao Carlos Gomes, de tanta vontade em
continuar a andar; e à Teresa, por possibilitar e manter a alegria destas memórias.
Janeiro/14