Recordações do irmão Francisco
Então quando é que vamos visitar a Tia?, perguntava
muita vez o Luís Simão para o meu irmão José. A nossa tia de Vizela, de noventa
e alguns, viúva de um irmão do nosso pai, era o mote para uma escapadela a
três. Por terras do norte, bem entendido. Eram dois ou três dias de aventura,
cujo itinerário ia sempre emergindo das profundezas da cabeça do José, com o
amém inevitável do Luís, quando não era o Luís, conhecedor dos enredos daquela
mente, que o picava com sugestões estapafúrdias.
No fundo, o José, nos intervalos das visitas aos
sítios, dos descansos e das comidas, gostava era de conduzir. Percorrer
caminhos que não conhecia, ou por onde já não passava há algum tempo, qual
condutor profissional zeloso dos seus conhecimentos de estrada.
A paragem obrigatória em Vizela, para visitar a tia
Etelvina bem entendido, metia conversas, e jantares familiares com os nossos
primos “residentes”. O José animava as recordações com as suas galhofas à
mistura. A nossa tia, a “Tia Nova”, que era folgazona, ria muito com os seus
ditos e fazia com ele um bom dueto. O último dueto fez agora três anos. A nossa
tia ainda ficou mais um, depois.
A “Tia Nova” apareceu assim baptizada por se ter
“intrometido” na família quando nós, os três irmãos, estávamos a espigar. Eu, o
mais velho, para aí com oito, depois o José com seis e a Teresa com quatro. O
casamento foi de resto uma festa. Com a nossa irmã, no meio de toda aquela
multidão de familiares, meio envergonhada, tentando levar direita, até aos
noivos, a salva das alianças. As outras tias já faziam parte das “mobílias” das
respectivas casas, quando começámos a perceber que tínhamos quase toda a
família no norte.
Mas voltemos ao passado recente, das escapadelas a
três: José, Luís e Francisco. Em Vizela, pernoitávamos na Pensão Central.
Central, porque ficava na esquina que dava para o estabelecimento de banhos. E
Vizela foi, durante muitos anos, os banhos nas termas. Eu ficava com o José e o
Luís no seu recato. Acontecia portanto dormir no mesmo quarto com o meu irmão,
coisa que já não fazia desde a nossa juventude.
Era estranho. Parecia que estava de repente a
descobrir uma pessoa que não via, de perto, há muitos anos. Recordo-lhe os
gestos, pausados, ao abrir o saco. Olhando para mim quando eu o olhava e a
dizer: então “kid” ? Com um sorriso maroto, de galhofa. Mas colocava tudo
meticulosamente. Como a casa dele, é claro, deduzia eu. E as rotinas? um livro
ou revista, trazida de propósito para fazer vir o sono, o tirar dos óculos, um
até amanhã e lá se ficava. Amanhã há mais, e melhor, devia pensar.
Levantava-se e queria logo abrir as cortinas, abrir a
janela e olhar para fora. Devia olhar e ficar por momentos a inventar a próxima
etapa. Continuava, para mim, a ser um espectáculo observá-lo de novo a arrumar
os pertences no saco. Como conseguia um canto para cada coisa por forma a que
as camisas, as meias e as camisolas ficassem, como ficavam: arrumadas! Passados
todos estes anos voltava a descobrir, na verdade, quem era a pessoa que estava
por detrás do meu irmão.
Recuando, lembro-me dele quando se “intrometeu” na
minha vida, fez este ano, em Outubro, sessenta e nove anos. Foi uma presença
incómoda no ambiente rotineiro, vivido por mim entre mãe, pai e a empregada que
nos criou. O que fazia ele, ali, naquele ambiente?
Mais tarde, brincávamos a construir casas tendo por
base a máquina de costura Singer da minha mãe. Máquina grande de pedal, estilo
mesa. A porta da entrada da casa fazia-se por cima da armação em ferro do
pedal. Depois, com cadeiras e bancos e toalhas agarradas com molas da roupa,
surgia o interior da casa, para trás e para a frente. Que se ia enchendo com
carros, cubos de construção. Enfim, com o que tínhamos à mão. Depois fazíamos
guerras com soldados ou corridas de carros. Os carros já eram a sua paixão. Alguns
pertencem ainda à sua colecção.
Lembro-me que era bom. Ao fim e ao cabo eu tentava
conduzir as coisas, dar “ordens” e ele a concordar. Assim estava bem. Sentia-me
confortável. Embora, relembrando, teria eu cinco anos? Fico com a suspeita de
que ele já as fazia pela cabeça dele. O caldo entornava mais, quando em casa,
ou com os amigos da família, se falava no “Zézinho”. Lá ficava eu para trás,
esquecido. Que raiva.
E passei anos com este registo em surdina, por baixo
do resto. Porque será que só comecei a dar por ele, diferente de mim, a
descobrir melhor quem era, alguns anos mais tarde. Talvez esteja a ser injusto
para comigo, pois fizemos muita coisa juntos. É que dava mais jeito com ele.
Com a Teresa, como rapariga entretanto aparecida, era um outro mundo, o das
raparigas: com segredos e coisas diferentes.
Nestes ciclos de descoberta e mais atenção relembro
também o Verão, precisamente há três anos, em que o fui visitar a Aljezur. Há
muito que ele falava dessas férias sempre na mesma casa. Fui lá de propósito
porque queria estar com ele. Ver como ele era. Seguir-lhe os passos e os
gestos. Ver como fazia as coisas, como passava o tempo, quem eram os amigos.
Tomar com ele outra vez banhos no mar. E também estava o João, que vi mais de
perto. Percebi como se estava a afirmar com o pai. A amadurecer. E felizmente
que fiz isso. Ficaram-me mais esses momentos bons.
Depois pensei que já me tinha acontecido o mesmo com o
meu pai. Aqui há uns anos, quando quis começar a ficar mais próximo dele, de
repente, fugiu-me também. Porque terá sido assim?
Fica uma saudade grande de não ter conhecido melhor os
dois. De não ter conhecido esgotar mais intensamente o prazer da sua companhia,
de partilhar conversas e afectos.
Percebo agora que tenho de conhecer melhor ainda todos
aqueles que me rodeiam.
Poderá dizer-se amar? É assim a vida.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2013
Francisco Silva Alves