DE MÁLAGA A MELILLA
Acordámos muito cedo (umas sete horas, ou até menos), ao som de um verdadeiro romance canoro. A primeira reacção foi de irritação pura, género "Rai's partam os (...) dos pássaros, que logo haviam de me acordar!!", mas gradualmente fomos ficando conquistados pelo virtuosismo dos pequenos cantores emplumados. Garanto que ao pé deles um Luciano Pavarotti e uma Teresa Berganza* não passam de aprendizes da mais baixa extracção. Parados que estávamos junto a uma finca para vender, tivemos de defrontar a chegada matinal e inesperada de um espanhol a querer correr connosco sem qualquer razão plausível. Cá para mim aqueles tipos ainda não conseguiram perdoar-nos o Tratado de Zamora, e muito menos Aljubarrota. Pelo menos não consigo encontrar expllcação mais satisfatória para tanto alarido e tanta e tamanha agressividade a hora tão matutina e – pormenor de não pouca importância – ainda antes do pequeno-almoço. E por falar em pequeno-almoço, parámos numa terreola chamada Castel del Ferro para fazer essa refeição fundamental e de caminho, assim como quem mata dois coelhos de uma cajadada, aproveitámos para lavar cara e dentes e pôr uma superficial aparência de ordem nas nossas abandalhadas pessoas. Deleitámo-nos depois com café (intragável) e churros (passáveis), uma combinação pouco ortodoxa mas, ao fim e ao cabo, perfeitamente dentro do espírito da viagem. Retomámos a estrada até Almería, onde tratámos dos bilhetes para o ferry e suportámos uma entediante espera até à hora do embarque.
Uma vez no barco, a intrépida exploradora (eu, recorde-se...) fechou-se na casa de banho para proceder a uma tentativa de lavagem mais alargada da sua pessoa. A acreditar nas palavras do intrépido explorador Alves, quem passasse à porta conseguiria ouvir nitidamente um alegre chapinhar. Tanto pior, que o que interessava era a Iimpeza, e saí de lá fresca como uma rosa.
Instalámo-nos num dos salões, o explorador Carlos mergulhado na leitura apaixonada e apaixonante da Isabel Allende, o explorador Alves perdido em complicadíssimos cálculos, todo urn aparato de tecnologia (bússolas, mapas, e mais que houvesse) sobre a mesa, para tentar determinar a hora exacta da passagem ao largo de Alboran, uma ilhota perdida no meio do Mediterrâneo que o já amplamente referido explorador tinha a ambiciosa (e vã, como se provou mais tarde) pretensão de fotografar. Quanto à exploradora Teresa, ia fazendo de tudo um pouco para matar o tempo – isto depois de ter lido a iHola! de fio a pavio e de ficar a saber que a Lola Flores continua em dívida para com o fisco, que o Eddie Barclay se casou pela oitava vez, e que há fortes rumores de que a Carolina do Mónaco, que parece levar muito a sério a sua vocação de galinha-poedeira, está outra vez grávida.
A travessia era longa, acabei por cair neste sono reparador e já bem merecido. Uma câmara maldosa fixou-o para a posteridade.
Ninguém chegou a saber ao certo quando se terá dado a famosa passagem ao largo de Alboran, não obstante o invencível optimismo do explorador Alves, todo entusiasmado a apontar um vulto ainda indeciso no horizonte que – como verificámos mals tarde – não era mais do que a costa de África. De concreto, apenas uma coisa: de Alboran não vimos nem sinais.
Chegada a MeliIla lá pelas oito e meia. Como quem prepara (no mínimo) uma expedição ao Pólo Sul, tomámos de assalto o primeiro supermercado que incautamente se nos atravessou no caminho, e foi uma verdadeira orgia de enlatados de toda a espécie e de toda uma vasta gama de produtos os mais diversificados (tão diversificados que até se comprou um amaciador de roupa... Achei a aquisição meio bizarra para uma expedição daquele cariz, mas como a decisão partiu do explorador Alves, mais experimentado do que eu naquelas andaças, acatei-a sem protestar.) O mesmo explorador presenteou a comunidade com uma garrafa de whisky, e houve logo de seguida alguma discórdia quanto ao número de garrafas de vinho a comprar. Eu e o Carlos batemo-nos galhardamenle por um mínimo de sete e levámos a melhor. Da longa Iista que tínhamos previamente elaborado faltava apenas riscar um item: um alguidar. Mas como tal artigo parecia a ser pura e simplesmente desconhecido no local, resignámo-nos a comprá-Io já em Marrocos.
Seguiu-se a busca de sítio para dormir e, como as alternativas eram nulas, contentámo-nos com o parque de campismo local. Uma vez montada a tenda, tratámos do saboroso dever de nos alimentar. Guiados pelo Zé, aportámos a um restaurante com ar de sobrevivente de um cataclismo e roemos melancolicamente uns bifes mal acompanhados por umas batatas fritas notavelmente engorduradas. Como o moral de exploradores da nossa têmpera não vai abaixo com tão pouco, não nos importámos muito e considerámos ser aquilo uma espécie de preparação gastronómico-estomacal para os duros dias que se avizinhavam. Recolhemos cedo, uma vez que queríamos passar a fronteira logo à hora da abertura. Desta vez a sorte não me favoreceu, e o meu sono foi sendo alternadamente perturbado pelo ressonar do intrépido explorador à minha esquerda (Alves) e do intrépido explorador à minha direita (Carlos).
* De notar que estes escritos têm vinte anos. A querida Tereza Berganza, extreordinária mezzo, inesquecível Rosina e Angelina, retirou-se há muito, coisa que o Pavarotti também devia ter sabido fazer. Sei que está agora muito doente, há que ser caridosa. Mas o homem nos últimos dez anos (pelo menos) não fez outra coisa senão prostituir-se. Nem todos sabem ter a graciosidade de uma Dame Joan Sutherland...
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