segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Domingo, 12 de Junho de 1988 - 3.º Dia

De Melilla à Casa em Ruínas

Acordámos bem cedinho e levantámos o acampamento. Contentámo-nos com um café (péssimo, não esqueçamos que Melilla é um enclave espanhol...) por pequeno-almoço e entabulámos conversações com vários cambistas na clandestinidade. O câmbio não era dos mais favoráveis e, depois de muito discutir, apenas o Zé trocou dinheiro.

A bicha de carros na fronteira de Marrocos desanimava o espírito mais paciente, mas afinal o diabo nunca é tão mau como o pintam e a coisa revelou-se menos má do que seria de esperar. Em pouco mais de uma hora estávamos depachados. Tivemos aliás bastante sorte, porque os polícias não foram especialmente implicativos e limitaram-se a uma olhadela superficial pelas bagagens. Antes assim, que arrumar toda aquela tralha outra vez teria sido uma valentíssima estopada.

Nem meia dúzia de quilómetros teríamos percorrido em território marroquino quando... trás!... primeiro controlo de passaportes, o primeiro dos muitos e incontáveis controlos que nos esperavam. Nada de grave, é certo, mas bastante maçador.

Pouco antes de Oujda fizemos a primeira paragem numa cidadezinha tranquila e de ar acolhedor. Se é verdade que em Roma há que ser romano, em Marrocos há que ser marroquino ou, como diria o Zé... nharro. Assim, instalámo-nos numa esplanada e tomámos um chá de hortelã. Aproveitámos também para fazer algumas compras: pão, laranjas, pêssegos, alhos, salsa... Ainda deitei um olhar inquisidor em volta na esperarança de vislumbrar alguidares de plástico nalgum lado, mas não tive sorte.

Voltámos à estrada, mas pouco depois fizemos nova paragem em Oujda, desta vez para cambiar dinheiro. O Zé ofereceu-se para tomar conta do jeep na nossa ausência. Enquanto eu perguntava a um passante (nharro, é claro) onde era a bendita casa de câmbios, o Carlos levou sumiço. Como eu não percebesse grande coisa das explicações que ia ouvindo num francês deplorável, o indígena propôs acompanhar-me. Informei o Zé, que acenou uma concordância muda, e trotei descontraidamente rua abaixo atrás do nharro. Não era longe e num instante arrumei o assunto, só estranhando que o Carlos (eu ainda tinha olhado em volta à procura dele, mas não o vi em parte alguma) não aparecesse. Estava eu a receber os dirhams das mãos do caixa quando ele e o Zé entram por ali dentro com urn ar esgazeado. Ao que parece tinham andado feitos doidos à minha procura e no mínimo já deviam estar a imaginar-me sequestrada no harém de algum sheik do deserto.

O Zé pôs um tom muito ríspido para me admoestar como se eu tivesse doze anos:

– A menina nunca mais faça isto, ouviu?

Abri muito os olhos e a boca nurn grande "oh!" do mais genuíno espanto.

– Mas... – ainda tentei protestar.

– Não sabíamos de si, andámos à sua procura! A menina não pode afastar-se de nós!

– Mas eu disse-lhe que aquele tipo me ia mostrar onde era isto! – exclamei, dividindo-me entre a surpresa e um princípio de irritação.

Aqui marquei um ponto – vantagem de cá. Não podendo contestar tão grande verdade, optou por se fazer desentendido e insistiu que daí em diante ficava estabelecido que eu não saía de baixo das vistas deles. Entre surpresa e irritação (ainda tive uma resposta torta a dar-me pulinhos impacientes na ponta da língua), venceu o meu natural bom humor. No fundo aquilo era bastante caricato, convenhamos... Pus-me a rir e prometi solenemente que daí em diante havia de segui-los como uma sombra, nem que fosse até às profundezas do inferno.

Prosseguimos viagem. Por volta da uma da tarde começámos a procurar uma sombra para ir fazer na terra dos outros aquilo que temos vergonha de fazer na nossa: um piquenique à beira da estrada, como uns perfeitos saloios. Por fim lá nos ajeitámos debaixo de umas árvores enfenzadas, estendemos urma manta no chão e começámos a tirar os mantimentos do jeep. Eu ia lançando olhadelas de soslaio para os lados – é que tínhamos a proximidade inquietante de um rebanho de cabras e, dado o ar manifestamente velhaco de todas elas, não era de pôr de parte a possibilidade de alguma marrada traiçoeira.

Acometido de um acesso de prodigalidade, o Zé propunha que se abrisse uma garrafa de vinho. O Carlos discordava, portanto era minha a responsabilidade do desempate. Venceu a sensatez: não senhor, não se abria garrafa nenhuma, que só tínhamos sete, o vinho ficava para o jantar .

Estômagos reconfortados, voltámos à estrada. Em breve a paisaqem começou a mudar. As árvores foram rareando cada vez mais, deixámos de atravessar povoações, e de ambos os lados da estrada estendia-se a perder de vista urna imensa vastidão desértica.

Grandes são os desertos, minha alma, e tudo é deserto...

Respirei fundo, no desmedido alívio de começar finalmente a sentir que entre mim e Lisboa havia uma enorme distância – aquilo era outra terra, era África, estava longe de tudo, longe de todos.

Fizemos uma única paragem, a primeira de muitas e muitas dezenas de paragens para tirar fotografias.


















Depois rodámos sem interrupções até perto das cinco da tarde. Nessa altura começámos a ver gafanhotos.1 Primeiro de quando em quando, depois continuamente, vindo estatelar-se contra o pára-brisas. Começou a levantar-se um vento furioso, a areia varria a estrada em sulcos nítidos, o céu fez-se de um tom ameaçador.

– Isto vai piorar – vaticinou o Zé, que ia na altura ao volante –, é melhor procurarmos sítio para acampar.

Menos arguta em questões meteorológicas, limitei-me a olhar em volta com ar estúpido, numa vaga e tola esperança de ver um oásis materializar-se diante dos meus olhos. Oásis não havia, só vi pouco depois uma tabuleta tosca que indicava que para a direita havia uma barragem. O Zé também reparou nela e, após breve conferência com um Carlos muito céptico, fez marcha atrás. Realmente parecia muito improvável que aquele caminho de cabras conduzisse ao que quer que fosse, e menos ainda a uma barragem, mas como as alternativas não eram nenhumas e o vento já soprava tão forte que avançávamos entre nuvens de areia, saímos mesmo da estrada. Um ou dois quilómetros mais adiante avistámos uma casa abandonada e solitária. Parámos. Protegida por um muro alto a rodear um pátio, era um abrigo providencial.

No meio de uma ventania ensurdecedora e de gafanhotos às centenas, montámos o nosso primeiro acampamento em Marrocos, e que era também o primeiro a obedecer aos cânones de intrépidos exploradores com um mínimo de brio. Com o factor brioso algumas polegadas desviado do zénite, o Carlos optou por montar a tenda dentro da velha casa, o que bastante deve ter contrariado um morcego misantropo que lá estava e que de repente se viu a braços (a asas, para haver mais rigor) com a sua privacidade devassada e o seu bendito sossego bastante comprometido. Já o factor brioso do Zé refulgia em todo o seu esplendor e, desafiando ventos e tempestades – não se trata de uma metáfora para abrilhantar estas páginas, é apenas a expressão sucinta de uma realidade muito concreta –, o intrépido explorador montou a sua tenda cá fora, no pátio, soltando ocasionais desabafos na melhor linguagem vicentina (humanos e desculpáveis, afinal, que aquele chão pedregoso era de fazer perder a paciência a um santo e não havia espia que entrasse).

Por fim tudo se resolveu em bem, as tendas estavam prontas, e passou-se à fase seguinte, a preparação do jantar.

Impõe-se fazer agora um breve parêntesis para explicar como estavam distribuídos os papéis dos intrépidos exploradores: o Zé era o arrumador oficial da expedição, com direito de vida e de morte sobre uma complexa jurisdição de malas, sacos, saquinhos e montanhas de tralha de difícil classificação, e seu respectivo acondicionamento e desacondicionamento (?) no jeep. O Carlos era o cozinheiro, pesando-lhe nos ombros a responsabilidade de elaborar as listas de compras, destinar ementas e confeccionar toda a sorte de iguarias. Eu, bem... para mim sobrou o papel bem menos glorioso de pau para toda a obra. Na verdade, as minhas atribuições eram bastante diversificadas: lavadora de loiça, auxiliar na montagem e desmontagem das tendas, descascadora de laranjas, costureira, esteticista, moço de recados, animadora, bode expiatório e milhentas outras coisas que agora não me ocorrem e que aliás seria fastidioso enumerar. Em suma, era um bem-humorado híbrido de Sexta-feira e de Oficial de Dia. Como se tudo isto ainda não bastasse, na minha qualidade de cronista oficial da expedição (como estas modestas páginas deixam bem patente), era também uma espécie de Pêro Vaz de Caminha de trazer por casa.

Mas voltemos à preparação do jantar. Temporariamente investida no cargo de ajudante do Dr. Carlos Vatel Gomes, fui indigitada para a missão pouco transcendental de picar salsa2 e de cortar um pimentão. Levei um dedo à boca e fiquei aflita:

– Safa! Isto pica que se farta!!

O Cartos, na certa a achar-me uma autoridade pouco abalizada, veio investigar. Provou também e pronunciou-se:

– Não pica nada! Corta mais dois.

– Três pimentões?! – revoltei-me – Mas tu estás doido!

Ele lançou-me um olhar esmagador que me reduziu ao silêncio. Obedeci. Magister dixit... Em último caso, a responsabilidade não era minha, como Pilatos lavei as mãos do assunto.

Quando mais tarde nos instalámos para jantar verificámos dolorosamente que eu tinha razão. É que um pimentão teria sido muito, imagine-se agora o efeito de três... Estava horrorosa e indescritivelmente picante! O Zé chorava (também aqui não se trata de uma figura de estilo, as lágrimas corriam-lhe mesmo pela cara), eu gemia lamentavelmente e o Carlos soprava tão discretamente quanto possível, em parte por pura bravata, em parte para mostrar que nem sequer estava assim tão picante – não esqueçamos que a culpa era só e de mais ninguém, e que a consciência lhe pesava...

Lá fora continuava a rugir a tempestade, mas nós estávamos quentes e confortáveis, num grande e abençoado sossego, bebendo café com todos os vagares. Foi então que o nosso Alves, decidida e definitivamente metamorfoseado em Indiana Alves, se lembrou de ir fazer explorações. Esbarrou com uma cordial mas firme recusa da minha parte (já estava sentada a escrever, e não haveria forças no mundo que me pudessem tirar a caneta da mão para a substituir por uma lanterna...), mas tendo obtido a adesão pronta do Carlos, lá foram os dois, embrenhando-se na escuridão. O Indiana teve o cuidado de me armar com a sua imponente faca de mato, para a qual o porvir reservava terríveis humilhações.

Evidentemente, é muito duvidoso que em caso de perigo (e nem sei bem de que espécie) eu fosse capaz de fazer uso dela, mas considerei que era inútil argumentar e que era generoso da minha parte dar ao Zé a possibilidade de se imaginar a viver aventuras de fazer gelar o sangue nas veias. Sem argumentar, pus a faca à mão de semear e acenei-lhes um adeusinho na ponta dos dedos. É claro, pedi-lhes que no regresso da passeata me chamassem ao aproximar-se, não fosse eu assustar-me. Sou valente, mas tudo tem o seu limite...


Julgo que não demoraram muito. Pelo menos, assim me pareceu. É que da escrita passei para a leitura, e o meu amigo Alberto Caeiro tem realmente o dom de me fazer perder a noção do tempo. Algo desapontados ao verificar que não tinham de acorrer em meu socorro, que eu não tinha sido raptada, nem violada, nem ao menos molestada pelo morcego nosso vizinho, os intrépidos exploradores sentaram-se pacatamente à conversa, bebericando golinhos de whisky e servindo-me fraternalmente, com uma benevolência de louvar, umas parcas gotas de vez em quando.
O dia seguinte anunciava-se cheio, recolhemos por fim. O vento não parou toda a noite de soprar em rajadas furiosas, mal nos deixando dormir. De vez em quando acordava e ficava muito quieta, a ouvi-lo. E sorria no escuro, a lembrar os versos de Alberto Caeiro:
Outras vezes ouço passar o vento,
E sinto que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.


1 Convém lembrar que no mês anterior Marrocos tinha sido atacado por uma terrível praga de gafanhotos. Ainda lhe apanhámos os restos.

2 As minhas agruras com a salsa ainda não tinham começado...

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