quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Sobre este blogue

Criado por mim há quase sete anos, a 7 de Janeiro de 2007, caprichosa tem sido a actividade do Alves & C.ª. O Carlos Gomes aceitou desde logo o convite para ser co-autor, o Zé preferiu manter-se como fornecedor de material fotográfico e, em privado, melga de alvitres e sugestões de cada vez que surgia nova publicação. «Na caixa de comentários, se faz favor!», resmungava eu. Em vão. As observações dele chegavam-me sempre via telefone ou por correio electrónico, nada a fazer.

Sobre o nome do blogue, eterna incompreendida que sou, também houve reparos. Por parte do Carlos, insurgindo-se bem humoradamente contra o papel secundário para que ele nos remetia a ambos. Mais uma vez por mensagem privada, ignorando olimpicamente a caixa de comentários tão mais adequada para o efeito. Essa mensagem, que aqui transcrevi, permitiu-me explicar muito sucinta e definitivamente o galhardo nome Alves & C.ª: é o título de um romance do grande Eça de Queiroz, enorme paixão minha; haver um Alves no nosso grupo foi uma feliz coincidência de que me apressei a tirar partido. Tão simples como isso.

O Carlos e eu fazemos a sua gestão, mas o Alves & C.ª é de todos nós e parece-me um instrumento muito adequado para registar e partilhar o enorme acervo de memórias felizes que o Zé nos deixou. Para maior comodidade de todos, instalei hoje uma funcionalidade que permite subscrever por email as actualizações que forem sendo feitas. Está na barra lateral direita (ver imagem), é só porem o vosso endereço de correio electrónico, submeter o registo e confirmá-lo após recepção de mensagem, para que seja validado.


Mensagem e apelo do Francisco Silva Alves

Seguiu hoje para todo o grupo de amigos do Zé, incluídos os que não puderam estar presentes no jantar de dia 17 de Dezembro – alguns estavam do outro lado do mundo –, a mensagem que abaixo transcrevo. Julgo que este blogue pode ser um bom e eficaz ponto de encontro para todos nós. Julgo também que todos gostariam de poder ler aqui as reminiscências que cada um guarda do Zé, memórias preciosas e ternas, quase sempre entremeadas de humor. Vamos então à mensagem do Francisco, e venham daí os vossos contributos.

Meus caros

Gostei muito do momento do jantar e gostei muito de estar convosco. Faço por manter vivo dentro de mim, tudo o que partilhei com o José. E quando estou convosco, revivo muitos desses momentos. E depois dou-me conta, ao ouvir contar as milhentas estórias que cada um de vocês também partilhou com ele, da complexidade e riqueza da sua personalidade.

Um texto do José Paulo Cabral de 2010, que agora me chegou através do Luís Simão, merece ser lido pois retrata muito bem, quanto a mim, esses traços da personalidade do José. Esse texto está já no blogue "alvesecia", de que falarei em seguida para quem ainda não o conheça. De qualquer forma, insiro em anexo esse belo texto.  

Agora, aqui fica algum retorno mais do jantar.

(a) Lista de contactos. Fica manuscrita tal como a recolhi. Se alguém se quiser "chegar à frente" e puder fazer um quadro em excel seria muito bom. Nestas coisas só se avança se o trabalho for repartido. Seria bom que cada um pudesse ir adicionando também novos contactos para alargar a lista. Basta mandar para mim que eu retenho e depois coloco na dita lista. Por exemplo, faltam pessoas que estiveram no jantar de 2011 e colegas médicos (José Fajardo e outros). A lista poderá alargar as presenças nestes convívios.

(b) Organizei uma lista de contactos em word. Permite fazer "copy/paste" e mandar mails para todo o grupo em simultâneo.. Espero que vos possa servir.
(c) Mando algumas fotos do jantar, também em anexo. Presumo que nem todos nos conhecemos. Há alguém que saiba colocar os nomes por cima das fotos? Eu poderei apoiar mas não sei fazer.

(d) Mando também o texto que escrevi e que já está, acompanhado de uma belíssima música, no blogue.  

(e) A propósito do blogue, conto o que sei para quem não conheça. Trata-se de um blogue que relata as aventuras dos Alves e Companhia. Sobretudo viagens. Mas agora também com depoimentos sobre o José. O motor e a alma do espaço é a Teresa Leandro. Viagens que metiam obrigatoriamente o Carlos Gomes e outros mais, de quando em vez. Têm divertidos relatos, com muito boas fotos e belas músicas de fundo. Vale a pena visitar. Aqui fica o endereço  http://alvesecia.blogspot.pt/

(f) Continuo a pensar que o José merecia uma colectânea de estórias e fotos. Estilo caderno organizado. Falta apenas continuar com relatos escritos, pois verbais são muitos. O blogue está disponível para receber directamente essas contribuições. Se necessário esclarecer pormenores com a Teresa Leandro.

(g) Finalmente gostava de deixar uma outra ideia. Uma das facetas importantes do meu irmão foi o ter o sido o "fotógrafo oficial" de muitos eventos em grupo. Grande parte de nós estamos retratados nesse arquivo imenso de "slides", com apontamentos sobre locais e pessoas a servirem de suporte, e que está em Miraflores. Vamos começar  a reviver esse passado? Pode fazer-se em conexão com os jantares, com vários figurinos possíveis a experimentar. Basta uma sala grande e no grupo existe quem tenha. O Ricardo poderá dar algum apoio nisso. De qualquer forma é preciso dar um "destino com futuro" a esse arquivo.

Espero não vos ter maçado. Um abraço a cada um. 

Francisco

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Crónica do Meu Amigo Zé Alves

Por José Paulo Cabral, há três anos.

Diz-se bem de toda a gente que morre. Nunca percebi bem.
– Será porque a partes mais sombrias do carácter de cada um são automaticamente apagadas a partir do minuto em que se morre?
– Será porque quem fica, e entende manifestar-se, quer adquirir uma pequena parte do protagonismo de quem partiu e decide esquecer, intencionalmente, politicamente, as partes menos edificantes?
– Ou será porque as pessoas boas vão primeiro?
Contra lógicas e sensatezes inclino-me para a terceira hipótese.
O filósofo José Gil, no livro Portugal Hoje, o medo de existir, também se refere à morte como um exemplo paradigmático da recusa portuguesa de inscrever; diz ele: socialmente, nada vindo do morto se prolonga na vida colectiva portuguesa; colectivamente, só o rito fúnebre lhe deu existência, só viveu à tona da vida durante o tempo da cerimónia fúnebre. Falamos em termos colectivos, não dos amigos e dos entes mais chegados.
Ocorrem-me estas reflexões porque o Zé Alves, todos nós, segundo me parece, devemos, de alguma forma, permanecer, ser inscritos, ser ouvidos no futuro, estejamos ou não entre os vivos. Ter a promessa de vir a ser antepassados. Mas quem quiser que leia o livro e que o perceba, se conseguir.
O nosso querido amigo Zé Alves morreu no dia 17 de Dezembro de 2010, segundo veio a saber-se, durante o sono, tranquilo. Acordou sem acordar, na sua posição do costume. E só.
Pregou-nos uma grande partida que permanece difícil de acreditar: dois dias depois de um dos convívios normais de amigos, os anos do Zé Luís; e uns cinco depois do habitual passeio de sábado de manhã, as tertúlias a passo, falando sobre tudo e sobre coisa nenhuma, os pregos no pão, as imperiais e os sumos. As miúdas a sorrir dos galanteios dos jovens antigos. O Zé de sempre, displicente para os temas aborrecidos da vida, mas sempre aquela companhia, a pessoa, o estar, trazia-nos o filho, a quem, apesar de homem feito, se colou o título de “Joãozinho” herdado dos tempos de miúdo, e que nós receávamos que se chateasse de morte com as conversas dos velhos. Mas ouvia-as, tudo indica. Este Zé foi a notícia desconcertante e triste do fim de tarde do dia 17. O choque. O não pode ser.
Mas foi.
Era um tipo especial. Sempre disponível para todos, sem parecer. Na sua sacola dos slides, uns 20 quilos de material, cassetes redondas, impecavelmente organizadas, o projector, o transformador massivo, uns 7 quilos, que transformava, sem aquecer, os 220 V das tomadas nos 110 V do projector, nunca ninguém percebeu a razão, os cadernos com os apontamentos minuciosos dos conteúdos, o ponteiro laser. O ecrã com tripé ia por fora. E lá se montava a parafernália e se assistia a um espectáculo deslumbrante das expedições que fazia por esse mundo fora, paisagens e naturezas, sem pessoas, só figurantes, magníficas fotografias, sem artifícios e sem efeitos, Trás-os Montes, Patagónia, Sicília, Moçambique, Alentejo, Holanda, Irlanda... E no fim, regresso de tudo à mala, onde ainda tinham sobrado umas cassetes, tudo minuciosamente rearrumado.
Era o nosso otorrino de serviço. No meu caso, com quatro filhos, as consultas eram frequentíssimas, Passo por aí às seis, Mas eu só chego às sete, Não faz mal, eu vejo o puto! E via, espreitava ouvidos e gargantas, sempre em falatório eloquente, depois uma visita à gaveta dos remédios, Vamos ver o que há por aqui. Locabiasol era receita frequente e o tipo tratava mesmo bem, sem parecer. Mais velhos, a minha prole já o contactava directamente, abusava, mas lá estava o Zé do costume, Passo por aí às 8.
Em conferências mais alargadas, na Junceira, havia a feira do Quem quer receitas? A verdadeira medicina social. E o sabor a vida. E lá se passava a uma azáfama de autocolantes e receitas médicas. A bem da saúde e do bem-estar.
Outras vezes privava-nos da sua companhia porque ia fazer buracos na parede a casa de uma velha amiga que não tinha ninguém. Black & Decker, julgo que noutra mala, completa com buchas, parafusos, escápulas, camarões, colas, espátulas, chaves de parafusos, alicates, martelos e o que mais. Ricas tardes passadas a fazer buracos e a pregar quadros dos outros. E a estar.
Quando estive doente nunca telefonava. Aparecia onde fosse. E ficava cinco minutos. Pouca conversa e Adeus Zeca, vê lá se melhoras.
Nunca conheci nem conheço ninguém tão disponível nem tão displicente em relação à sua disponibilidade.
E não conto mais histórias, quero apenas vir a recordá-las a propósito, como se o Zé continuasse, e que a tristeza da sua falta vá ficando preenchida por essas recordações.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2010.


José Paulo Cabral

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O José Alves na Intimidade

Recordações do irmão Francisco

Então quando é que vamos visitar a Tia?, perguntava muita vez o Luís Simão para o meu irmão José. A nossa tia de Vizela, de noventa e alguns, viúva de um irmão do nosso pai, era o mote para uma escapadela a três. Por terras do norte, bem entendido. Eram dois ou três dias de aventura, cujo itinerário ia sempre emergindo das profundezas da cabeça do José, com o amém inevitável do Luís, quando não era o Luís, conhecedor dos enredos daquela mente, que o picava com sugestões estapafúrdias.

No fundo, o José, nos intervalos das visitas aos sítios, dos descansos e das comidas, gostava era de conduzir. Percorrer caminhos que não conhecia, ou por onde já não passava há algum tempo, qual condutor profissional zeloso dos seus conhecimentos de estrada.

A paragem obrigatória em Vizela, para visitar a tia Etelvina bem entendido, metia conversas, e jantares familiares com os nossos primos “residentes”. O José animava as recordações com as suas galhofas à mistura. A nossa tia, a “Tia Nova”, que era folgazona, ria muito com os seus ditos e fazia com ele um bom dueto. O último dueto fez agora três anos. A nossa tia ainda ficou mais um, depois.

A “Tia Nova” apareceu assim baptizada por se ter “intrometido” na família quando nós, os três irmãos, estávamos a espigar. Eu, o mais velho, para aí com oito, depois o José com seis e a Teresa com quatro. O casamento foi de resto uma festa. Com a nossa irmã, no meio de toda aquela multidão de familiares, meio envergonhada, tentando levar direita, até aos noivos, a salva das alianças. As outras tias já faziam parte das “mobílias” das respectivas casas, quando começámos a perceber que tínhamos quase toda a família no norte.

Mas voltemos ao passado recente, das escapadelas a três: José, Luís e Francisco. Em Vizela, pernoitávamos na Pensão Central. Central, porque ficava na esquina que dava para o estabelecimento de banhos. E Vizela foi, durante muitos anos, os banhos nas termas. Eu ficava com o José e o Luís no seu recato. Acontecia portanto dormir no mesmo quarto com o meu irmão, coisa que já não fazia desde a nossa juventude.

Era estranho. Parecia que estava de repente a descobrir uma pessoa que não via, de perto, há muitos anos. Recordo-lhe os gestos, pausados, ao abrir o saco. Olhando para mim quando eu o olhava e a dizer: então “kid” ? Com um sorriso maroto, de galhofa. Mas colocava tudo meticulosamente. Como a casa dele, é claro, deduzia eu. E as rotinas? um livro ou revista, trazida de propósito para fazer vir o sono, o tirar dos óculos, um até amanhã e lá se ficava. Amanhã há mais, e melhor, devia pensar.

Levantava-se e queria logo abrir as cortinas, abrir a janela e olhar para fora. Devia olhar e ficar por momentos a inventar a próxima etapa. Continuava, para mim, a ser um espectáculo observá-lo de novo a arrumar os pertences no saco. Como conseguia um canto para cada coisa por forma a que as camisas, as meias e as camisolas ficassem, como ficavam: arrumadas! Passados todos estes anos voltava a descobrir, na verdade, quem era a pessoa que estava por detrás do meu irmão.

Recuando, lembro-me dele quando se “intrometeu” na minha vida, fez este ano, em Outubro, sessenta e nove anos. Foi uma presença incómoda no ambiente rotineiro, vivido por mim entre mãe, pai e a empregada que nos criou. O que fazia ele, ali, naquele ambiente?

Mais tarde, brincávamos a construir casas tendo por base a máquina de costura Singer da minha mãe. Máquina grande de pedal, estilo mesa. A porta da entrada da casa fazia-se por cima da armação em ferro do pedal. Depois, com cadeiras e bancos e toalhas agarradas com molas da roupa, surgia o interior da casa, para trás e para a frente. Que se ia enchendo com carros, cubos de construção. Enfim, com o que tínhamos à mão. Depois fazíamos guerras com soldados ou corridas de carros. Os carros já eram a sua paixão. Alguns pertencem ainda à sua colecção.
Lembro-me que era bom. Ao fim e ao cabo eu tentava conduzir as coisas, dar “ordens” e ele a concordar. Assim estava bem. Sentia-me confortável. Embora, relembrando, teria eu cinco anos? Fico com a suspeita de que ele já as fazia pela cabeça dele. O caldo entornava mais, quando em casa, ou com os amigos da família, se falava no “Zézinho”. Lá ficava eu para trás, esquecido. Que raiva.

E passei anos com este registo em surdina, por baixo do resto. Porque será que só comecei a dar por ele, diferente de mim, a descobrir melhor quem era, alguns anos mais tarde. Talvez esteja a ser injusto para comigo, pois fizemos muita coisa juntos. É que dava mais jeito com ele. Com a Teresa, como rapariga entretanto aparecida, era um outro mundo, o das raparigas: com segredos e coisas diferentes.

Nestes ciclos de descoberta e mais atenção relembro também o Verão, precisamente há três anos, em que o fui visitar a Aljezur. Há muito que ele falava dessas férias sempre na mesma casa. Fui lá de propósito porque queria estar com ele. Ver como ele era. Seguir-lhe os passos e os gestos. Ver como fazia as coisas, como passava o tempo, quem eram os amigos. Tomar com ele outra vez banhos no mar. E também estava o João, que vi mais de perto. Percebi como se estava a afirmar com o pai. A amadurecer. E felizmente que fiz isso. Ficaram-me mais esses momentos bons.

Depois pensei que já me tinha acontecido o mesmo com o meu pai. Aqui há uns anos, quando quis começar a ficar mais próximo dele, de repente, fugiu-me também. Porque terá sido assim?

Fica uma saudade grande de não ter conhecido melhor os dois. De não ter conhecido esgotar mais intensamente o prazer da sua companhia, de partilhar conversas e afectos. 
Percebo agora que tenho de conhecer melhor ainda todos aqueles que me rodeiam.
Poderá dizer-se amar? É assim a vida.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2013

Francisco Silva Alves