terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O José Alves na Intimidade

Recordações do irmão Francisco

Então quando é que vamos visitar a Tia?, perguntava muita vez o Luís Simão para o meu irmão José. A nossa tia de Vizela, de noventa e alguns, viúva de um irmão do nosso pai, era o mote para uma escapadela a três. Por terras do norte, bem entendido. Eram dois ou três dias de aventura, cujo itinerário ia sempre emergindo das profundezas da cabeça do José, com o amém inevitável do Luís, quando não era o Luís, conhecedor dos enredos daquela mente, que o picava com sugestões estapafúrdias.

No fundo, o José, nos intervalos das visitas aos sítios, dos descansos e das comidas, gostava era de conduzir. Percorrer caminhos que não conhecia, ou por onde já não passava há algum tempo, qual condutor profissional zeloso dos seus conhecimentos de estrada.

A paragem obrigatória em Vizela, para visitar a tia Etelvina bem entendido, metia conversas, e jantares familiares com os nossos primos “residentes”. O José animava as recordações com as suas galhofas à mistura. A nossa tia, a “Tia Nova”, que era folgazona, ria muito com os seus ditos e fazia com ele um bom dueto. O último dueto fez agora três anos. A nossa tia ainda ficou mais um, depois.

A “Tia Nova” apareceu assim baptizada por se ter “intrometido” na família quando nós, os três irmãos, estávamos a espigar. Eu, o mais velho, para aí com oito, depois o José com seis e a Teresa com quatro. O casamento foi de resto uma festa. Com a nossa irmã, no meio de toda aquela multidão de familiares, meio envergonhada, tentando levar direita, até aos noivos, a salva das alianças. As outras tias já faziam parte das “mobílias” das respectivas casas, quando começámos a perceber que tínhamos quase toda a família no norte.

Mas voltemos ao passado recente, das escapadelas a três: José, Luís e Francisco. Em Vizela, pernoitávamos na Pensão Central. Central, porque ficava na esquina que dava para o estabelecimento de banhos. E Vizela foi, durante muitos anos, os banhos nas termas. Eu ficava com o José e o Luís no seu recato. Acontecia portanto dormir no mesmo quarto com o meu irmão, coisa que já não fazia desde a nossa juventude.

Era estranho. Parecia que estava de repente a descobrir uma pessoa que não via, de perto, há muitos anos. Recordo-lhe os gestos, pausados, ao abrir o saco. Olhando para mim quando eu o olhava e a dizer: então “kid” ? Com um sorriso maroto, de galhofa. Mas colocava tudo meticulosamente. Como a casa dele, é claro, deduzia eu. E as rotinas? um livro ou revista, trazida de propósito para fazer vir o sono, o tirar dos óculos, um até amanhã e lá se ficava. Amanhã há mais, e melhor, devia pensar.

Levantava-se e queria logo abrir as cortinas, abrir a janela e olhar para fora. Devia olhar e ficar por momentos a inventar a próxima etapa. Continuava, para mim, a ser um espectáculo observá-lo de novo a arrumar os pertences no saco. Como conseguia um canto para cada coisa por forma a que as camisas, as meias e as camisolas ficassem, como ficavam: arrumadas! Passados todos estes anos voltava a descobrir, na verdade, quem era a pessoa que estava por detrás do meu irmão.

Recuando, lembro-me dele quando se “intrometeu” na minha vida, fez este ano, em Outubro, sessenta e nove anos. Foi uma presença incómoda no ambiente rotineiro, vivido por mim entre mãe, pai e a empregada que nos criou. O que fazia ele, ali, naquele ambiente?

Mais tarde, brincávamos a construir casas tendo por base a máquina de costura Singer da minha mãe. Máquina grande de pedal, estilo mesa. A porta da entrada da casa fazia-se por cima da armação em ferro do pedal. Depois, com cadeiras e bancos e toalhas agarradas com molas da roupa, surgia o interior da casa, para trás e para a frente. Que se ia enchendo com carros, cubos de construção. Enfim, com o que tínhamos à mão. Depois fazíamos guerras com soldados ou corridas de carros. Os carros já eram a sua paixão. Alguns pertencem ainda à sua colecção.
Lembro-me que era bom. Ao fim e ao cabo eu tentava conduzir as coisas, dar “ordens” e ele a concordar. Assim estava bem. Sentia-me confortável. Embora, relembrando, teria eu cinco anos? Fico com a suspeita de que ele já as fazia pela cabeça dele. O caldo entornava mais, quando em casa, ou com os amigos da família, se falava no “Zézinho”. Lá ficava eu para trás, esquecido. Que raiva.

E passei anos com este registo em surdina, por baixo do resto. Porque será que só comecei a dar por ele, diferente de mim, a descobrir melhor quem era, alguns anos mais tarde. Talvez esteja a ser injusto para comigo, pois fizemos muita coisa juntos. É que dava mais jeito com ele. Com a Teresa, como rapariga entretanto aparecida, era um outro mundo, o das raparigas: com segredos e coisas diferentes.

Nestes ciclos de descoberta e mais atenção relembro também o Verão, precisamente há três anos, em que o fui visitar a Aljezur. Há muito que ele falava dessas férias sempre na mesma casa. Fui lá de propósito porque queria estar com ele. Ver como ele era. Seguir-lhe os passos e os gestos. Ver como fazia as coisas, como passava o tempo, quem eram os amigos. Tomar com ele outra vez banhos no mar. E também estava o João, que vi mais de perto. Percebi como se estava a afirmar com o pai. A amadurecer. E felizmente que fiz isso. Ficaram-me mais esses momentos bons.

Depois pensei que já me tinha acontecido o mesmo com o meu pai. Aqui há uns anos, quando quis começar a ficar mais próximo dele, de repente, fugiu-me também. Porque terá sido assim?

Fica uma saudade grande de não ter conhecido melhor os dois. De não ter conhecido esgotar mais intensamente o prazer da sua companhia, de partilhar conversas e afectos. 
Percebo agora que tenho de conhecer melhor ainda todos aqueles que me rodeiam.
Poderá dizer-se amar? É assim a vida.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2013

Francisco Silva Alves

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