Por José Paulo Cabral, há três anos.
Diz-se bem de toda a gente que morre. Nunca percebi
bem.
– Será porque a partes mais sombrias do carácter de
cada um são automaticamente apagadas a partir do minuto em que se morre?
– Será porque quem fica, e entende manifestar-se,
quer adquirir uma pequena parte do protagonismo de quem partiu e decide
esquecer, intencionalmente, politicamente, as partes menos edificantes?
– Ou será porque as pessoas boas vão primeiro?
Contra lógicas e sensatezes inclino-me para a
terceira hipótese.
O filósofo José Gil, no livro Portugal Hoje, o medo de existir, também se refere à morte como um
exemplo paradigmático da recusa portuguesa de inscrever; diz ele: socialmente, nada vindo do morto se prolonga na
vida colectiva portuguesa; colectivamente, só o rito fúnebre lhe deu
existência, só viveu à tona da vida durante o tempo da cerimónia fúnebre.
Falamos em termos colectivos, não dos amigos e dos entes mais chegados.
Ocorrem-me estas reflexões porque o Zé Alves, todos
nós, segundo me parece, devemos, de alguma forma, permanecer, ser inscritos,
ser ouvidos no futuro, estejamos ou não entre os vivos. Ter a promessa de vir a
ser antepassados. Mas quem quiser que leia o livro e que o perceba, se
conseguir.
O nosso querido amigo Zé Alves morreu no dia 17 de
Dezembro de 2010, segundo veio a saber-se, durante o sono, tranquilo. Acordou
sem acordar, na sua posição do costume. E só.
Pregou-nos uma grande partida que permanece difícil
de acreditar: dois dias depois de um dos convívios normais de amigos, os anos
do Zé Luís; e uns cinco depois do habitual passeio de sábado de manhã, as
tertúlias a passo, falando sobre tudo e sobre coisa nenhuma, os pregos no pão,
as imperiais e os sumos. As miúdas a sorrir dos galanteios dos jovens antigos.
O Zé de sempre, displicente para os temas aborrecidos da vida, mas sempre
aquela companhia, a pessoa, o estar, trazia-nos o filho, a quem, apesar de
homem feito, se colou o título de “Joãozinho” herdado dos tempos de miúdo, e que
nós receávamos que se chateasse de morte com as conversas dos velhos. Mas
ouvia-as, tudo indica. Este Zé foi a notícia desconcertante e triste do fim de
tarde do dia 17. O choque. O não pode ser.
Mas foi.
Era um tipo especial. Sempre disponível para todos,
sem parecer. Na sua sacola dos slides, uns 20 quilos de material, cassetes
redondas, impecavelmente organizadas, o projector, o transformador massivo, uns
7 quilos, que transformava, sem aquecer, os 220 V das tomadas nos 110 V do
projector, nunca ninguém percebeu a razão, os cadernos com os apontamentos
minuciosos dos conteúdos, o ponteiro laser.
O ecrã com tripé ia por fora. E lá se montava a parafernália e se assistia a um
espectáculo deslumbrante das expedições que fazia por esse mundo fora,
paisagens e naturezas, sem pessoas, só figurantes, magníficas fotografias, sem
artifícios e sem efeitos, Trás-os Montes, Patagónia, Sicília, Moçambique,
Alentejo, Holanda, Irlanda... E no fim, regresso de tudo à mala, onde ainda
tinham sobrado umas cassetes, tudo minuciosamente rearrumado.
Era o nosso otorrino de serviço. No meu caso, com
quatro filhos, as consultas eram frequentíssimas, Passo por aí às seis, Mas eu
só chego às sete, Não faz mal, eu vejo o puto! E via, espreitava ouvidos e
gargantas, sempre em falatório eloquente, depois uma visita à gaveta dos
remédios, Vamos ver o que há por aqui. Locabiasol
era receita frequente e o tipo tratava mesmo bem, sem parecer. Mais velhos, a
minha prole já o contactava directamente, abusava, mas lá estava o Zé do
costume, Passo por aí às 8.
Em conferências mais alargadas, na Junceira, havia a
feira do Quem quer receitas? A
verdadeira medicina social. E o sabor a vida. E lá se passava a uma azáfama de
autocolantes e receitas médicas. A bem da saúde e do bem-estar.
Outras vezes privava-nos da sua companhia porque ia
fazer buracos na parede a casa de uma velha amiga que não tinha ninguém. Black & Decker, julgo que noutra
mala, completa com buchas, parafusos, escápulas, camarões, colas, espátulas,
chaves de parafusos, alicates, martelos e o que mais. Ricas tardes passadas a
fazer buracos e a pregar quadros dos outros. E a estar.
Quando estive doente nunca telefonava. Aparecia onde
fosse. E ficava cinco minutos. Pouca conversa e Adeus Zeca, vê lá se melhoras.
Nunca conheci nem conheço ninguém tão disponível nem
tão displicente em relação à sua disponibilidade.
E não conto mais histórias, quero apenas vir a
recordá-las a propósito, como se o Zé continuasse, e que a tristeza da sua
falta vá ficando preenchida por essas recordações.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2010.
José Paulo Cabral
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